O que o filme “JUDY: Muito Além do Arco-Íris” nos revela sobre o trabalho infantil?
Nesse artigo “O que o filme “Judy: muito além do arco-íris” revela sobre trabalho infantil?”, importa antes falarmos da vida artística de Judy Garland.
Neste ano, o filme “JUDY” ganhou uma estatueta do Oscar, na categoria de melhor atriz, pela atuação de René Zellweger, que interpretou a personagem real de Judy Garland.
Judy Garland (nascida Frances Ethel Gumm) foi uma conhecida atriz, cantora e dançarina dos anos 40, famosa por dar vida ao papel de Dorothy Gale, aos 17 anos, no filme O Mágico de Oz, produzido pela MGM em 1939.
O filme consegue revelar, de forma sutil e intencional, por meio da narrativa dos últimos anos de vida de Judy, como a precocidade da sua carreira artística influenciou, posteriormente, no seu próprio declínio enquanto artista, na sua saúde mental e física e nos seus relacionamentos.
Isso porque, apesar de ter iniciado muito nova e ter trabalhado em filmes premiados e de grande bilheteria, a atriz viveu os seus últimos anos arruinada financeiramente e com vícios em álcool e drogas.
Muitos desses, importante dizer, introduzidos em sua “dieta” desde os tempos do Mágico de Oz, para inibir aumento de peso ou para induzir ao sono, perdido diante de compromissos assumidos com megaproduções em tão tenra idade.
O filme revela também o assédio moral e sexual por parte dos produtores do Mágico de Oz e expõe a incapacidade de Judy de impor a sua necessidade de descanso e lazer sobre as demandas e exigências dos produtores da MGM.
Lembremos que Judy era uma novata em Hollywood diante dos gigantes donos dos estúdios MGM.
Assim como Judy, vários outros artistas precoces também sofreram, na fase adulta, com questões financeiras e de abuso de drogas, como Drew Barrymore, Macaulin Calcan e Britney Spears.
Tudo isso induz à reflexão de que, ao contrário do senso comum, o início da criança no trabalho artístico não garante um futuro promissor.
A experiência revela que esse início antecipado tolhe o necessário e gradual amadurecimento e conhecimento que uma criança pode desenvolver.
Não bastasse, atinge até mesmo a sua posterior colocação profissional, por conta da deficiência ou ausência de estudo e qualificação, durante o período infantil.
Na legislação interna brasileira, tem-se que a regra é a proibição de trabalho em idade inferior a dezesseis anos, prevista no art. 7º, XXXIII da nossa Constituição Republicana/88, a seguir:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;
No âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), há um compromisso dos Estados-partes de progressiva elevação da idade para o trabalho, não podendo, em qualquer caso, ser inferior a 15 anos ou à idade referente à conclusão da escolaridade compulsória. Ou ainda, não podendo ser inferior a catorze anos, para os países em desenvolvimento.
É o que se extrai do artigo 2º, itens 3, 4 e 5 da Convenção 138 da OIT:
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A idade mínima fixada nos termos do parágrafo 1º deste Artigo não será inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, não inferior a quinze anos.
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Não obstante o disposto no Parágrafo 3º deste Artigo, o País-membro, cuja economia e condições do ensino não estiverem suficientemente desenvolvidas, poderá, após consulta às organizações de empregadores e de trabalhadores concernentes, se as houver, definir, inicialmente, uma idade mínima de quatorze anos.
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Todo País-membro que definir uma idade mínima de quatorze anos, de conformidade com o disposto no parágrafo anterior, incluirá em seus relatórios a serem apresentados sobre a aplicação desta Convenção, nos termos do Artigo 22 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, declaração:
a) de que subsistem os motivos dessa providência ou
b) de que renuncia ao direito de se valer da disposição em questão a partir de uma determinada data.
Esses limites se justificam diante da necessidade de se garantir a proteção integral à pessoa em desenvolvimento, sujeito de direitos, cujo dever de proteção é devido não somente pelo Estado, como também pela família e sociedade (artigo 227 da CR/88).
No entanto, o trabalho infantil artístico constitui-se em uma exceção à regra proibitiva da idade prevista na Constituição e na Convenção 138 da OIT.
Veja-se que a Consolidação das Leis do Trabalho autoriza o trabalho artístico da seguinte forma:
Art. 406 – O Juiz de Menores poderá autorizar ao menor o trabalho a que se referem as letras “a” e “b” do § 3º do art. 405: (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
I – desde que a representação tenha fim educativo ou a peça de que participe não possa ser prejudicial à sua formação moral; (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
II – desde que se certifique ser a ocupação do menor indispensável à própria subsistência ou à de seus pais, avós ou irmãos e não advir nenhum prejuízo à sua formação moral. (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
Essa autorização para trabalho artístico também é excepcionada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, veja-se:
Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
[…] II – a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza.
No âmbito da OIT, a exceção do trabalho infantil quando se tratar de representação artística vem no artigo 8º da já citada Convenção n. 138 da OIT:
Artigo 8º
- A autoridade competente, após consulta às organizações de empregadores e de trabalhadores concernentes, se as houver, poderá, mediante licenças concedidas em casos individuais, permitir exceções para a proibição de emprego ou trabalho provida no Artigo 2º desta Convenção, para finalidades como a participação em representações artísticas.
- Licenças dessa natureza limitarão o número de horas de duração do emprego ou trabalho e estabelecerão as condições em que é permitido.
Contudo, pela importância dessa proteção ao trabalho infantil, cumpre diferenciar a participação artística – meramente eventual -, daquela exercida de forma permanente e para fins de subsistência do adolescente.
Na primeira hipótese, poderá ser dispensado o cumprimento do limite de idade, mediante licença individual que especifique a duração e condições da permissão (art. 2º e 8º da Convenção n. 138 da OIT, art. 406 da CLT e 149, II e §§ 1º e 2º do ECA).
No entanto, em se tratando de verdadeiro contrato de emprego, entendo não ser possível sua autorização em contrariedade ao limite estabelecido no art. 7º, XXXIII da CR, que prevalece sobre o disposto em Convenção da OIT ou na CLT, não somente em face da supremacia da Constituição, mas também por se tratar de norma mais benéfica.
A esse respeito, os Procuradores do Trabalho Xisto Tiago Medeiros Neto e Rafael Dias Marques [1]já escreveram acerca dos males causados pelo trabalho infantil, mesmo o trabalho artístico, ainda tão “glamurizado” pela sociedade em geral e listam a necessidade dos seguintes requisitos para a sua autorização:
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excepcionalidade. Neste caso, para se apurar essa excepcionalidade é necessário que haja a imprescindibilidade de contratação de uma criança ou adolescente menor de 16 anos, de modo que aquela específica atividade artística não possa, objetivamente, ser representada por maior de 16 anos. Ademais, deve se analisar se a função artística pode proporcionar o desenvolvimento do potencial artístico do infante;
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situações individuais e específicas;
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ato de autoridade competente (autoridade judiciária);
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existência de uma licença ou alvará individual;
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o labor deve envolver manifestação propriamente artística;
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a licença ou alvará deverá definir em que atividades poderá haver labor, e quais as condições especiais de trabalho.
E prosseguem listando os requisitos que o alvará judicial que autoriza o trabalho artístico aos menores de 16 anos deverá conter, sob pena de nulidade:
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prévia autorização dos representantes legais e concessão de alvará judicial, para cada novo trabalho realizado;
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impossibilidade de trabalho em caso de prejuízos ao desenvolvimento biopsicossocial da criança e do adolescente,devidamente aferido em laudo médico-psicológico;
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matrícula, frequência e bom aproveitamento escolares, além de reforço escolar, em caso de mau desempenho;
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compatibilidade entre o horário escolar e a atividade de trabalho,resguardados os direitos de repouso, lazer e alimentação, dentre outros;
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assistência médica, odontológica e psicológica;
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proibição de labor a menores de 18 anos em situação e locais perigosos, noturnos, insalubres, penosos, prejudiciais à moralidade e em lugares e horários que inviabilizem ou dificultem a frequência à escola;
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depósito, em caderneta de poupança, de percentual mínimo incidente sobre a remuneração devida;
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jornada e carga horária semanal máximas de trabalho, intervalos de descanso e alimentação;
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acompanhamento do responsável legal do artista, ou quem o represente, durante a prestação do serviço;
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garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários quando presentes, na relação de trabalho, os requisitos previstos em lei(arts. 2° e 3° da CLT).
Cabe enfatizar que a Justiça do Trabalho – em que pese sua especialização e maior sensibilidade quanto aos efeitos deletérios ocasionados pelo trabalho de crianças e adolescentes – carece de competência para apreciar pedido de autorização de trabalho infantil (art. 406 da CLT). Foi o que o Supremo Tribunal Federal decidiu no Informativo n. 917:
Compete à Justiça Comum Estadual (juízo da infância e juventude) apreciar os pedidos de alvará visando a participação de crianças e adolescentes em representações artísticas.
STF. Plenário. ADI 5326/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 27/9/2018 (Info 917).
Diante desses argumentos acima listados, forçoso se desfazer da noção, a meu ver equivocada, de que o trabalho de crianças em produções teatrais, musicais ou cinematográficas reserva um futuro próspero e rentável ao artista mirim.
O que deve ser buscado, nas hipóteses que autorizam o trabalho infantil, é o respeito à condição de pessoa em desenvolvimento da criança e do adolescente, a prioridade absoluta e a proteção integral preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, para que histórias como a Garland, trazida no “Judy: muito além do arco-íris” não se materializem para além da Terra de Oz.
Referência:
[1] MEDEIROS NETO, Xisto Tiago; MARQUES, Rafael Dias. Manual de Atuação do Ministério Público na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil/ Conselho Nacional do Ministério Público. – Brasília: CNMP, 2013, página 37.